José Wilson RODRIGUES de BRITO: Angústia como possibilidade de liberdade em Kierkegaard
NGÚSTIA E LIBERDADE EM SOREN ABYE KIERKEGAARD

RESUMO
O objetivo central deste trabalho é analisar a questão da Angústia e da Liberdade na existência humana segundo a concepção filosófica do dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). A angústia é tomada como uma condição fundamental da existência humana, da qual cada indivíduo por mais que deseje fugir não encontra fuga da mesma, pois ela (angústia) é quem propicia ao homem a liberdade através das possibilidades que a mesma visualiza antes da concreção do que antes era mera possibilidade. Assim, podemos dizer que a angústia direciona o homem não para uma liberdade abstrata, mas para a real liberdade que exige compromissos e responsabilidades àquele que busca ser autêntico frente sua própria determinação de personalidade, que se dá pela escolha da escolha. A partir daí, este indivíduo já não permanece no instante da decisão, mas torna-se ele mesmo um ser que existe com suas diversas características e sujeito às contingências da vida. A existência é devir, contingência. Cada homem é um ser indeterminado, inacabado, finito, limitado, angustiado, que sofre, enfim; mas que, ao mesmo tempo, pode se autoconstruir ao decidir para si e tomar postura pessoal diante do que seja social.. Para melhor compreendermos e aprofundarmos nosso conhecimento quanto a esta temática, buscamos, mostrar a angústia como esta possibilidade de liberdade humana, onde o homem se confronta com o sentimento de solidão, com o surgimento da angústia e sua condição diante do nada. Neste sentido, não se pode negar a importância deste estudo, no qual a angústia tem este papel fundamental de mostrar ao indivíduo o seu vasto campo de possibilidades na liberdade. Cabe, então, ao homem, em sua reflexão, decidir a partir de si mesmo, embora sabendo que há risco de não se ter acertado na escolha (devido às contingências), mas que o mais importante é o fato de decidir com seriedade e responsabilidade, diferentemente dos que nem sequer ousam arriscar decidir ou até mesmo deixam que outros decidam em seu lugar.

INTRODUÇÃO
A partir desta pesquisa abordaremos a Angústia como possibilidade da liberdade humana. Nesta perspectiva fundamental a exemplificar isto em Kierkegaard, veremos a situação do homem em seu sentimento de solidão, no qual se sente abandonado até mesmo por Deus, frente às grandes questões pessoais a que somente ao indivíduo cabe tentar solucionar, como citarmos o caso do sacrifício de Isaac por seu pai Abraão. Onde buscaremos explicar como se dá o surgimento da angústia, bem como a condição em que venha a se encontrar o homem diante do nada proporcionado pela angústia, pela possibilidade frente à questão conceitual da liberdade humana.

A ANGÚSTIA COMO POSSIBILIDADE DE LIBERDADE HUMANA
A angústia pode ser comparada à vertigem. Quando o olhar imerge num abismo, existe uma vertigem, que nos chega tanto do olhar como do abismo, visto que não seria impossível deixar de encarar. Esta é a angústia, vertigem da liberdade, que surge quando, ao desejar, o espírito, estabelecer a síntese, a liberdade imerge o olhar no abismo das suas possibilidades e agarra-se á finitude para não soçobrar .
Como a citação acima referida iniciamos este capítulo dedicado à abordagem objetiva a respeito da angústia como possibilidade de liberdade humana. Isto porque ela é um dos principais assuntos trabalhos por Kierkegaard ao longo de sua carreira filosófica – e por que não dizer também religiosa, já que “é uma certeza direta de que o autor foi e é um autor religioso” . Seguiremos um esquema em que exporemos, primeiramente, sobre o sentimento de desamparo que o homem experiencia frente ao que compete somente a ele mesmo refletir em seu silêncio interior. Logo após, abordaremos o surgimento da angústia enquanto tal, que nos levará ao subitem posterior que tratará da situação do homem diante do nada.
Por ser um autor religioso, Kierkegaard recorre inúmeras vezes a casos relatados nas Sagradas Escrituras (Bíblia), como a queda (pecado) do homem relatada no livro do Gênesis e o Sacrifício de Isaac. Deter-nos-emos, por enquanto, ao segundo caso em nossa reflexão sobre o sentimento de solidão no homem, que a seguir aprofundá-lo-emos, observando alguns problemas decorridos no mesmo.
O sentimento de solidão no homem
Cabe aqui destacarmos, a respeito do sentimento de solidão no homem. Para tanto, remeteremos a algumas passagens do Gênesis, nas quais se tem narrada a história da obediência de Abraão para com Deus no sacrifício de Isaac – momento em que temos profundas reflexões feitas por Kierkegaard com relação ao paradoxo da relação do Absoluto com a Moral. A outra passagem a que nos deteremos nesta pesquisa é a do confronto de Adão diante do obedecer a Deus e suas possibilidades quanto a ser dotado de liberdade – momento em que se pode fazer uma análise de algumas hipóteses, como origem da angústia, assim como aprofundar um estudo a respeito da liberdade e suas possibilidades.
Kierkegaard alega, em sua obra Temor e Tremor, que se poderia atribuir quatro hipóteses do que possa ter ocorrido no sacrifício de Isaac por seu pai Abraão. Mas antes de adentrarmos a este tópico, e para que possamos compreendê-lo melhor, acreditamos que seja necessário esclarecer um pouco do contexto desta história relacionada a Isaac e Abraão. Este já era de idade muito avançada, assim como sua esposa, e ainda não tinham nem mesmo um filho. Porém, Deus, através de um aviso, promete a Abraão que Sara, sua esposa, teria um filho, e que, através deste filho, Abraão seria pai de uma multidão, a tal ponto que poderia ser comparada às estrelas do céu, incontáveis em quantidade. Esta era a promessa de Deus para com Abraão. Deus realmente lhe dá um filho, Isaac, porém este filho é pedido em sacrifício, onde o próprio pai, Abraão, deve mata-lo, como cumprimento da exigência de Deus.
Aqui é onde, segundo Kierkegaard, existe o grande dilema em que o indivíduo (Abraão) é colocado entre a obediência a Deus e o agir moral de um pai para com seu filho. Pode-se destacar que, neste sentido, Abraão é tido pela tradição cristã como um referencial de obediência e fé em Deus, que é tido como Pai e todo Amor, segundo o seguinte trecho em sua obra Temor e Tremor.
Este homem não era, aliás, um pensador. Não sentia o mínimo desejo de ir além da sua fé. Parecia-lhe ser destino mais belo a posteridade vir a chamar-lhe o pai da fé, e considerava-se digno de inveja possuí-la, ainda, ninguém de tal suspeitasse.
Neste caso, era exigido por Deus uma prova de fé a Abrão, na qual seria provada, através do sacrificar o próprio filho em nome e por motivação da fé em Deus. Já neste acontecido é possível notar, segundo Kierkegaard, a profunda angústia (assunto que trataremos melhor mais adiante) não somente de Abraão, mas também de Isaac, de tal modo que o filho mesmo chega a expressá-la no momento em que Abraão o agarra para efetivar o sacrifício, como podemos conferir:
Isaac não o compreendia. Foi então que, tendo-se afastado um pouco do filho, Isaac lhe tornou a ver o rosto, desta vez alterado, o olhar feroz, as afeições aterradoras. Agarrou Isaac pelo peito deitou-o por terra e disse-lhe: estúpido! Supões que sou teu pai faço o que me apetece! Então Isaac, fremente e com grande angústia, gritou: Deus do Céu Tende Piedade de mim! Deus de Abraão, tende piedade de mim, sê meu pai, por que já não tenho outro na Terra! Mas Abraão ciciava: Deus do Céu, dou-te graças. Vale mais que me julgue um monstro do que perca a fé em ti.
Aqui temos o maior foco deste item, que é o sentimento de desamparo, abandono, solidão que o homem experiencia. Era já notável que Abraão se sentia intrinsecamente abandonado por Deus. Abraão, através de sua tamanha fé e contínua espera em Deus, tornar-se-ia o pai de uma multidão, gerações vindouras da posteridade de Isaac. Assim, Abraão seria, propriamente, o maior exemplo de profunda fé e obediência abnegada de tudo, servindo apenas ao seu Deus. Porém, a concretização desta promessa encontra-se ameaçada, já que seu filho – a prova maior da confirmação e possibilidade real de tal promessa se concretizar – era exigido como oferta sacrificial.
Agora esta promessa se tornava uma impossibilidade de realização, uma posteridade grande e longínqua, a qual tanto esperava Abraão. Também é de elevado interesse percebermos que Abraão está totalmente voltado à prática de sua fiel e inabalável fé com Deus, embora fazendo esta enorme exigência de sacrifício de Isaac. Podemos, então, pontuar neste homem de tamanha fé em Deus, seu sentimento de solidão diante de todos, no momento em que devia abdicar de seus propósitos, planos e esperanças de um ser possibilitado a realizar o grande sonho de posteridade em Isaac.
E no entanto, Abraão era o eleito de Deus era o mesmo Senhor que lhe infligia a provação. Tudo então se ia perder! O renome magnífico da raça futura, a promessa à posteridade de Abraão. Tudo isso não passara de fugitivo clarão divino que ele deveria apagar agora. Esse fruto magnífico tão antigo como a fé no coração do patriarca, e anterior em muitos anos a Isaac, esse fruto da vida de Abraão, santificado pela oração, amadurecido na luta, essa benção nos lábios do pai, esse fruto ia ser-lhe arrebatado e perder todo sentido: que sentido, na verdade podia encerrar a promessa, quando se impunha a sacrificar Isaac!
Mesmo assim, vê-se em Abraão, sua contínua esperança, pois acreditou sem jamais duvidar. Como Kierkegaard menciona, ele não se abalou em momento algum diante da prova que Deus lhe exigia, a tal ponto que se afirma:
Durante todo esse tempo conservou a fé, acreditou que Deus não lhe queria exigir Isaac estando, no entanto, disposto a sacrificá-lo se tal fosse indispensável. Acreditou no absurdo, por que tal não faz parte do humano cálculo. O absurdo consiste em que Deus, pedindo-lhe o sacrifício, devia revogar a sua exigência no instante seguinte. Trepou a montanha e no momento em que a faca faiscava, acreditou que Deus não lhe exigiria Isaac. Então, seguramente, surpreendeu-o o desenlace, mas já então também havia por um duplo movimento recobrado o seu primitivo estado, e foi por isso que recebeu Isaac com a mesma alegria que sentira pela primeira vez.
Com isto, pode-se reforçar mais ainda tamanha certeza de Abraão diante da fé em Deus, a tal ponto de se despojar por inteiro da vontade, da solicitação que Aquele lhe faz: “sacrificar o melhor que possuía” .
Aqui surge uma pergunta chave: como conciliar este sentimento de atitude de obediência a Deus e a renegação em sacrifício do próprio filho a um Deus que é, segundo o autor, Amor?
Neste episódio, Kierkegaard destaca o indivíduo sendo o sujeito que vivencia de tal modo sua fé que é capaz de se encontrar no estado de solidão, abandono, ou melhor, se encontrar desamparado em sua humanidade por um Deus que lhe faz a mais cruel exigência, isto no âmbito da fé, mas que tem repercussão em toda a sua vida, tanto moral quanto espiritual.
Em sua dimensão moral e espiritual, acontece este conflito, no qual se tem o paradoxo existencial. Abraão (pai amável para com seu filho) deve entregar seu único e amado filho a Deus, em sacrifício como prova de fé. Por outro lado, este mesmo Abraão se sente abandonado por Deus, já que aquilo que para ele era de maior valor (o filho e a promessa de posteridade a Abraão, são tomados neste momento como nada) é desvalorizado, já não tem sentido algum numa dimensão do vivenciar da fé em Deus neste indivíduo.
O paradoxo aqui se dá no concernente à fé e à moral. No caso de Abrão, este é movido pela vivência de sua crença e fé em Deus a optar pela obediência quanto ao que lhe é solicitado por Deus. Mesmo sabendo da consequência que poderia trazer esta sua opção pela fé, impossibilidade das gerações pós-Isaac, Abraão decide, preferencialmente, lançar-se no propósito que Deus lhe coloca – sacrificar Isaac – dando sentido ao que é considerado pelos homens e sua Ética (moral) como um assassinato, ainda mais contra o próprio filho.
Cabe ressaltarmos a distinção clara quanto ao sacrifício, tanto no aspecto da fé como no da moral. Isto tendo em vista que, no referente à fé, este mandato de Deus é simplesmente visto como um holocausto, no qual é ofertado uma vida humana, a de Isaac. Já no concernente à Ética, este episódio é considerado um assassinato, onde o pai é convidado a matar seu filho, sem sequer haver um critério legítimo que possa provar se é realmente Deus que faz tal pedido para provar a fé de Abraão. Um outro ponto muito importante é que, embora ele cresse que era Deus quem fazia isto, era impossível compreender tal situação, pois, segundo Kierkegaard, “Deus é amor” , e este amor é “incomensurável com toda a realidade” . Daí é que a Ética dos homens não entende tal feito, pois, se Deus é amor incomensurável com toda a realidade, não deveria submeter Abraão à tamanha brutalidade, que era matar o seu filho – que tanto amava – por causa de sua fé. Isto é absurdo e desumano, segundo a visão dos homens.
Portanto, na narração bíblica, que estamos refletindo juntamente com Kierkegaard, este pretende mostrar a existência do conflito formado entre a fé e a ética humana, bem como o sentimento de abandono do indivíduo voltado apenas ao vivenciar da fé de modo que o sacrifício se torna inadmissível na concepção e relação de amor entre pai e filho.
Observando ainda este constante confronto momentâneo entre fé e ética, percebe-se que Abraão é arremessado numa situação na qual não se trata necessariamente de ter que decidir entre, digamos assim, dois códigos de ética ou sistemas de valores. Apenas ele está só e diante do que é incompreensível e infinito, não possuindo outra coisa a não ser a sua relação com Deus. Assim, ele está incapacitado racionalmente para avaliar qual deveria ser sua conduta naquele momento.
Nesta solidão é que Abraão, com a força de sua fé, acaba optando pelo infinito, sendo que, como menciona Kierkegaard em sua obra, aquele
paga os favores do tempo, cada instante da sua vida pelo preço mais elevado – porque a mínima coisa é sempre realizada em função do absurdo [...] porque este homem efetuou e completou, a todo momento, o movimento do infinito. Converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida: conhece a felicidade do infinito; a experiência da dor da total renúncia àquilo que mais ama no mundo.
Utilizando esta metáfora, Kierkegaard alega que Abraão, pela fé, não hesitou a saltar imediatamente da razão e da ética para o plano do absoluto, onde ser humano, com suas faculdades racionais, já não consegue enxergar, pois a fé é um salto, ausência de meditação humana, não podendo, entre o finito e o infinito, haver transição racional. Desta forma, Abraão se consolida como representante radical do homem religioso.
No subitem seguinte, trataremos mais especificamente da angústia e de sua origem. Angústia esta que se fez presente constantemente nos diversos momentos em que Abraão experienciou sua solidão, desamparo e desespero diante da situação na qual Deus o colocou como provação de sua fé. Daí nos deteremos à angústia, que terá seu espaço especial a partir do próximo tópico, deixando desde já claro que crença e angústia, segundo Kierkegaard, são inseparáveis, bem como o temor de Deus é inseparável do tremor.
O surgimento da angústia
A angústia é um dos temas chaves da filosofia existencialista, a tal ponto que outros pensadores, após Kierkegaard, trabalharam em suas reflexões sobre este sentimento enquanto condição intrínseca ao ser humano. Precisamente, foi Kierkegaard quem primeiro introduziu este conceito na filosofia, tendo como propósito mostrá-la enquanto atitude imanente à própria situação do indivíduo no mundo, atitude esta que o indivíduo pode compreendê-la.
Para que tenhamos um melhor embasamento neste tópico, recorremos ao próprio Kierkegaard em sua argumentação, na qual afirma que, para se chegar ao verdadeiro conceito de angústia, é preciso percorrer um caminho árduo de reflexão acerca de tal assunto, sobre o qual se tem várias hipóteses. Somos advertidos da necessidade de cautela quanto ao não tomar logo por corretas determinadas teorias, sem primeiro analisa-las bem, não se deixando levar pelo comodismo frente à dificuldade em tal meditação sobre o assunto em questão.
Em sua reflexão acerca do conceito de angústia, Kierkegaard faz menção à questão da sua origem a partir de outros conceitos, para que se tenha em vista que a angústia não é simplesmente criada de ideias mirabolantes, mas que existe sim toda uma articulação que dá sentido à sua existência no homem. Daí, Kierkegaard destaca a importância de alguns conceitos, como:
A inocência é a ignorância. Inocente, o homem ainda não está determinado como espírito, ainda que a alma conserve uma unidade imediata com o seu ser natural. Nele, ainda o espírito sonha. Tal interpretação está inteiramente de acordo com a Bíblia, que, não concedendo ao homem em estado de inocência a capacidade de discernir entre o bem e o mal, condena todas as meritórias fantasias católicas.
Percebemos que Kierkegaard explicita importantes considerações sobre a angústia tendo como suporte primordial em sua tese a Bíblia. Nesta obra, desenvolve esta questão no âmbito da narração genesíaca, onde se tem a história (mito) de Adão como primeiro homem e representante da humanidade, a experimentá-la e, através dela, chegar à queda (pecado).
Neste sentido é que se deve destacar o conceito de inocência, no qual o indivíduo (Adão) se encontra primitivamente, e que não se deve colocar neste instante, antes do pecado, o homem como já reconhecedor do bem e do mal, como bem enfatiza kierkegaard.
É neste momento, porém, que se deve ter uma atenção apurada para notar que já aqui se vislumbra algo, ou melhor, outra coisa, como bem afirma literalmente nosso filósofo:
Em tal estado, existe calma e descanso; porém existe, ao mesmo tempo, outra coisa que, entretanto, não é perturbação nem luta, porque não existe nada contra que lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz, porém, este nada? Este nada dá nascimento à angústia. Aí está o mistério profundo da vida; é, ao mesmo tempo, angústia.
Esta outra coisa, a qual se refere Kierkegaard, é o que ele denomina como nada. Este nada é propriamente o que dá origem à angústia, pois, no mesmo, nada se manifesta. Portanto, há uma imanente relação entre o nada e a angústia, e ambos até se tornam equivalentes, como destaca Kierkegaard na frase acima, corresponde a dizer que ali (no nada) está situada, ao mesmo tempo, a angústia.
Concernente à questão da inocência no indivíduo, é interessante percebermos que o mesmo ainda não tem reais condições de fazer o confronto, ou seja, discernir entre o bem e o mal, pois não é capaz de visualizar o que se tem no porvir, já que “a inocência vê sempre e sempre, diante de si, este nada” .
Um aspecto importante que não podemos olvidar é que, ao tentar explicar o surgimento da angústia, Kierkegaard enfatiza bem que o homem, enquanto inocente, não é determinado como espírito, pois esta síntese é consolidada no próprio homem somente quando acontece a queda, onde neste momento o indivíduo se dá conta de que há uma relação feita entre o corpo e a alma, que tem necessidade de uma síntese através deste terceiro elemento que é o espírito. Assim, a unidade é firmada entre corpo e alma.
Kierkegaard assinala como de elevada importância a determinação espiritual pertencente somente ao homem, pois, através dela é que o homem faz a experiência da angústia. Esta é “a realidade da liberdade como puro possível” ; que se difere à do animal, que não tem esta condição por ser um ser desprovido da categoria espiritual, “por essa razão é que não a achamos no animal, cuja natureza não tem, precisamente, a determinação espiritual”.
Kierkegaard defende em seus argumentos que, no momento em que há a angústia no ser inocente, ela (a angústia) não deve ser vista como sentimento que cause culpa, sofrimento ou fardo para o indivíduo, mas que seja entendida, primeiramente, como uma suave inquietação, como se pode observar sua importância em uma criança.
Observai a infância: achareis aí esta angústia mais exatamente desenhada como uma procura de aventura, do monstruoso, do mistério (...). A angústia é de tal modo fundamental na criança que ela não deseja dispensá-la; até quando inquietada pela angústia a criança mostra-se encantada com sua suave inquietação.
Diante do que já foi dito, mais precisamente na dimensão psicológica, Kierkegaard continua sua reflexão sobre o surgimento da angústia, e para isto, recorremos, especificamente, para tentar esclarecer esta questão, ao ser humano como uma síntese “síntese de alma e do corpo”, importando observar pequenos detalhes que, muitas vezes, podem passar por despercebidos àqueles que buscam repostas rápidas, ou até mesmo errôneas, a respeito de determinados detalhes, como este.
Em Kierkegaard, nota-se, insistentemente, que o homem é um ser espiritual pela existência da alma e do corpo, de tal forma que essa síntese não seria imaginável se não existisse a possibilidade da reunião de tais elementos em um terceiro, que é o espírito. Portanto, mesmo em seu estado de inocência, o homem não deve ser considerado apenas um animal, pois, “se alguma vez o fosse em qualquer instante de sua existência, nunca se tornaria homem”.
Cabe ressaltar, então, que Kierkegaard alega a presença do espírito no ser humano mesmo que este esteja em seu estado de inocência, pois, para que o homem se constitua, é preciso que se tenha esta relação entre corpo e alma. Com isto, Kierkegaard se preocupa em solucionar a problemática gerada no que concerne à presença do espírito, que “mostra-se, por um lado, como um poder inimigo” , por confundir a relação ente alma e corpo, e por outro como ser enquanto potência amiga que deseja constituir a relação. Daí Kierkegaard pergunta:
Qual é, portanto, a relação do homem com esta potência ambígua? Qual a relação do espírito com ele mesmo e com a sua condição? A relação é a angústia. O espírito não pode estar contente com ele mesmo, nem apreender-se, enquanto o seu eu se conservar exterior a si mesmo.
Aqui se pode notar que Kierkegaard faz referência à constituição do próprio eu de cada indivíduo, onde se deve vivenciar, experienciar sua individualidade em sua condição de existência humana; isto tendo em vista a compreensão de que o homem é constituído pela angústia, relação intrínseca e constituinte do indivíduo, e da qual não é possível fugir, pois ele a ama, embora tente fugir da mesma, como veremos em outro momento.
A inocência, neste sentido, atinge seu cume, e a ignorância é determinada pelo espírito. Mesmo assim, pode-se dizer que não deixa de existir como angústia, tendo como pressuposto que a ignorância, aqui referida, se abre ao nada, pois, até este momento, ainda não há reconhecimento do bem e do mal, já que a realidade completa do saber projeta-se na angústia como infindável nada da ignorância.
A respeito do homem, do eu como relação (síntese), interessa-nos dizer que Kierkegaard levanta a tese de que através da subjetividade como relação, pode-se obter o reconhecimento de uma formação exclusa de tudo o que seja tido estável, a ponto de que, assim o indivíduo se sujeita à angústia, à falta, ao desespero, bem como àquilo que seja fragilidade própria, conforme podemos notar no seguinte trecho:
O homem é espírito. Mas o que é o espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mas e melhor do que a relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é uma relação de dois termos.

Como podemos observar nas palavras de Kierkegaard, esta relação não é tão simples quanto possa parecer no primeiro momento, pois a mesma consiste em que o eu não seja tomado simplesmente como relação em si, mas que volte-se sobre si própria, tendo em vista que o eu é a relação voltada sobre si própria.
Kierkegaard, usando o relato bíblico que narra o pecado original, em que Adão está no Jardim do Éden, alega que basta apenas uma palavra para que caia por terra a ignorância existente em seu momento de inocência. Exatamente neste instante é que “a angústia recebeu sua primeira presa, e em lugar do nada, tem uma palavra misteriosa” . As palavras proferidas por Deus a Adão são, na verdade, constituintes de uma ordem, que diz: “porém, os frutos da Árvore do Bem e do Mal não comerás”.
Segundo Kierkegaard, em uma de suas hipóteses relacionadas a esta narrativa, fica estampado que, no mais profundo de sua inocência, Adão não entendia o real sentido desta frase, já que o mesmo só poderia compreender a diferenciação entre o bem e o mal após o saborear do fruto. Assim, Kierkegaard reflete condicionalmente a respeito da possibilidade de se admitir que, com proibição em Adão, tenha nascido o desejo, e que daí, no lugar da ignorância, se tenha o saber. Porém, para que se confirme isto, seria necessário que Adão já conhecesse a liberdade, pois seu desejo deveria fazer uso da liberdade.
Fica claro, então, que, após a proibição, Adão é submetido a uma tamanha inquietude que “nele desperta a possibilidade da liberdade” . Assim, “o que se ofertava à inocência como um nada da angústia adentrou-se e conserva ainda aqui um nada: a aflitiva possibilidade de poder” , assunto que desenvolveremos em nosso próximo tópico.
O homem diante do nada
Agora nos deparamos com a questão do homem que se encontra diante do nada, que, segundo Kierkegaard, é relatado como exemplo claro disso a narração bíblica em que Adão é alcançado pela voz externa (Deus), que lhe ordena algo, como já mencionado anteriormente. Este algo é causador de uma grande estranheza em Adão, pois este ainda não conhecia, ou melhor, não tinha consciência enquanto indivíduo do que lhe poderia ocorrer, dependendo de sua atitude frente a tal expressão de Deus na frase. Temos, então, o homem lançado no âmbito do nada, da “possibilidade de poder, como uma forma superior da ignorância, como expressão elevada da angústia” .
Deste modo, Kierkegaard menciona que é através da angústia que ocorre no homem o despertar para a possibilidade de ser livre e que, nesta possibilidade, é que o homem se dá conta de que não sabe a que se refere especificamente suas possibilidades. O nada como categoria constitutiva da compreensão do eu sujeito em Kierkegaard torna-se, então, intrínseco ao ser humano, pois o mesmo se depara com o que lhe é de mais próprio como ser sujeito ao imprevisível, ou melhor, está no nível do possível e, ao mesmo tempo, de incerteza do bom ou mau êxito quanto à sua concreção possível no real.
Kierkegaard enfatiza que, sendo admitido que da proibição nasce o desejo, daí realmente surge a hipótese de que Adão conhecesse a liberdade, cabendo, por conseguinte, uma análise minuciosa a respeito do que Deus lhe adverte com a frase por certo morrerás, tendo em vista que Adão ainda não tinha elementos suficientes para discernir o que significaria morrer. Portanto, uma vez levando afinco esta hipótese, precisamos dizer que, deste modo, pela angústia, o homem é colocado, consequentemente, diante de duas instâncias ao mesmo tempo: a coisa proibida e o castigo. Isto, principalmente, pelo fato de o homem estar anteriormente imerso na profundidade do nada pertencente a si mesmo, como nos é afirmado.
A possibilidade incomensurável de poder, originada pela proibição, cresceu pelo fato de esta possibilidade recordar uma outra como sua consequência. Deste modo, a inocência é empurrada até a derradeira extremidade. A angústia em que ela imerge coloca-se em relação com a coisa proibida e com o castigo. Ela não é culpada, e, contudo, a angústia existe como se já estivesse perdida .
Assim, podemos notar que, nesta reflexão sobre o nada, frente ao qual o homem se encontra, acrescenta-se a angústia como fator primordial a lançar o homem diante de si mesmo, como um ser finito, mas que é dotado de possibilidades inúmeras através de sua liberdade. Também no trecho da obra kierkegaardiana, é necessário ressaltar, desde já, a questão que mais adiante trataremos com mais precisão, que é a de que, podendo visualizar em sua angústia as possibilidades de efetivação de sua decisão, o homem é conduzido a meditar imediatamente sobre as possíveis consequências de suas deliberações para o futuro, pois, a partir da tomada de posicionamento para com suas opções, são-lhe dadas também as responsabilidades de assumir para si suas consequências advindas de tais efetivações.
Portanto, a angústia é vista, como já frisado, como aquela que confronta o homem consigo mesmo, de modo que esteja preparando e anunciando ao indivíduo a escolha, pela qual ele possa concretizar, realizar o seu próprio eu. Isto por que a angústia é pessoal, de modo que o sujeito deve constantemente se dar conta disso, não fugindo, mas sim aprendendo a conviver com a mesma para que concretize, a partir da escolha, suas mais variadas possibilidades na vivência, como podemos conferir que:
Concomitantemente, a angústia é a coisa mais profundamente pessoal e nenhuma manifestação real da liberdade mostra-se tão zelosa do Eu como a possibilidade de concreção [...] contudo, enfeitiça-nos com a sua suave inquietude.
Partindo da consciência do nada de sua vida, o homem pode construir a si mesmo, pois, a partir daí, é que, como um ser que tem em si possibilidade de liberdade, o mesmo pode decidir e sair da inércia, na qual se encontra o seu nada na angústia, pois “o nada que era objeto da angústia como se torna sempre mais alguma coisa” . Podemos dizer aqui que já há uma diferenciação entre o nada que era tido simplesmente como objeto da angústia, antes do salto qualitativo, e o nada existente após este salto.
Veremos, na citação abaixo que, enquanto nada da angústia, este pode ser tomado como que imanente à angústia, a ponto de ser visto como pressentimento. Assim nos diz Kierkegaard:
O nada da angústia, portanto, representa nesta conjuntura, uma espécie de complexo de pressentimentos refletidos sobre si próprios e aproximando-se cada vez mais do homem, ainda que no fundo, ainda não representem nada na angústia, contudo – veja-se bem – não um nada que seja indiferente ao indivíduo, porém um nada em comunicação viva com a ignorância da inocência. Aquela meditação equivale a uma predisposição que, antes de ser praticada a falta, significa fundamentalmente nada .
Segundo Kierkegaard, vê-se claramente, que, antes do salto qualitativo, este nada está continuamente relacionado com a ignorância da inocência em seu sentido de poder ser para o homem aquela categoria, na qual se tem uma diversidade de reflexões sobre si mesmo, e que, pouco a pouco, se achega ao indivíduo. A reflexão, neste momento, dá-se no âmbito de si mesmo, entendendo os pressentimentos em si mesmos, e não fora de si.
Um pouco mais a frente, nesta problemática do nada da angústia anterior ao salto qualitativo e do nada após este salto, Kierkegaard menciona que, no segundo caso, o homem já não é mais contido apenas por meditações sobre si mesmo, mas que agora a reflexão adquire outro sentido, o de ir bem mais além.
Já a partir do instante em que, com o salto qualitativo, o homem se torna culpado, a meditação aparece como a condição prévia em que o homem se baseia para remontar além de si próprio, visto que o pecado se autopressupõe não antes de ser estabelecido [...], porém, antes que o foi .
Deste modo, vemos que nosso filósofo aponta para o sentido de que o ser humano em sua vida é profundamente marcado pela permanência da falta, pois o mesmo é um ser inacabado e possuidor de uma busca do que está até além de si mesmo, como poderemos constatar na etapa posterior de nossa pesquisa a partir do estudo da relação existente entre possibilidade, angústia e liberdade.
Considerações finais
Kierkegaard vai à raiz da questão a respeito da angústia e da liberdade humana, onde notamos que a angústia é esta condição fundamental da existência humana, um sentimento que não tem objeto preciso, mas que simplesmente é alimentada pelo indeterminado, pelo nada. Neste nada, a angústia mostra seu vasto campo de possibilidades, onde o possível é equivalente à angústia. Por sua vez, a angústia nos direciona à liberdade.
A existência, em si, é pura contingência. É aqui onde o indivíduo se angustia profundamente ao não saber se suas reais opções conduzir-lhe-ão àquilo que antes era pura possibilidade, mas que agora se faz concretude pela escolha.
Deste modo, podemos dizer que a angústia aponta não para uma liberdade abstrata, identificada com o livre-arbítrio, mas a uma real liberdade que é concreta. O indivíduo, a partir desta consciência de si mesmo, como ser espiritual, que tem em si a síntese entre corpo e alma, volta-se para o infinito como ser finito e inacabado em busca de sua infinitude ao escolher.


Referências Bibliográficas

KIERKEGAARD, Sören Aabye. O conceito de angústia. São Paulo: Hemus Liv. Ed., 1968.
_______________ Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor. Lisboa: Edições 70, 1986.
_______________ Temor e tremor. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
_______________ O desespero humano. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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